Quando pensamos em florestas tropicais, muitas vezes imaginamos uma exuberância verde, úmida e fresca, protegida do calor escaldante do sol pelos densos dosséis das árvores. Mas e se eu te contasse que, mesmo sob essa aparente proteção, as temperaturas estão subindo de forma alarmante?
Um novo estudo revela uma realidade preocupante: as mudanças climáticas já estão afetando drasticamente o ambiente abaixo das copas das florestas tropicais do mundo, muito mais do que imaginávamos.
O Mito da Floresta Invulnerável
Por muito tempo, cientistas e ambientalistas acreditaram que as florestas tropicais eram relativamente resilientes às mudanças climáticas globais. Afinal, o denso dossel deveria agir como um guarda-chuva gigante, protegendo o solo e os habitantes da floresta do calor extremo. No entanto, um estudo recente publicado na revista Nature Climate Change desafia essa noção, revelando que a realidade é bem diferente.
A pesquisa, conduzida por uma equipe internacional de cientistas, mergulhou fundo no coração das florestas tropicais do mundo para entender como as temperaturas abaixo das copas das árvores mudaram nas últimas décadas. E o que eles descobriram é alarmante: mesmo pequenos aumentos na temperatura (menos de 1°C) já levaram a regimes de temperatura altamente novos em grande parte dos trópicos.
Desvendando o Enigma das Temperaturas Subterrâneas
Mas como os pesquisadores chegaram a essa conclusão? Eles usaram um modelo climático sofisticado para simular as condições climáticas horárias abaixo do dossel em mais de 300.000 locais de florestas tropicais globalmente entre 1990 e 2019. É como se tivessem colocado termômetros invisíveis espalhados por toda a Amazônia, a Bacia do Congo e as florestas do Sudeste Asiático.
O que torna esse estudo tão inovador é justamente esse foco no microclima da floresta. Até agora, a maioria das pesquisas sobre mudanças climáticas se concentrava nas temperaturas do ar acima das copas das árvores. Mas a verdade é que a maioria das espécies da floresta tropical vive no sub-bosque ou abaixo dele, onde as condições climáticas podem ser bem diferentes.
Um Novo Normal Nada Normal
Imagine que você more em uma casa onde a temperatura sempre foi constante, variando apenas entre 22°C e 24°C. De repente, sem motivo aparente, a temperatura começa a oscilar entre 20°C e 26°C. Pode não parecer uma grande mudança, mas para quem está acostumado com a estabilidade, isso representa uma alteração significativa no ambiente.
É exatamente isso que está acontecendo com nossas florestas tropicais. Os pesquisadores descobriram que, entre 2005 e 2019, a maioria das florestas tropicais não perturbadas do mundo experimentou condições climáticas pelo menos parcialmente fora da faixa de condições históricas de base. Em algumas áreas da Amazônia e da Bacia do Congo, as condições climáticas anuais foram quase inteiramente sem precedentes em relação às linhas de base históricas.
América Latina: O Epicentro do Aquecimento
A América Latina, lar da maior floresta tropical do mundo, a Amazônia, está sentindo o calor mais intensamente. A região experimentou a maior novidade geral de temperatura cumulativa e a maior novidade em temperatura média anual, variação média diurna de temperatura e sazonalidade de temperatura.
Para se ter uma ideia, 27% da floresta não perturbada na América Latina recentemente experimentou regimes altamente ou inteiramente novos na temperatura média anual, e 31% experimentaram variações diárias de temperatura altamente ou inteiramente novas. Essas mudanças ocorreram principalmente nos Andes tropicais do norte e na costa do Pacífico da América do Sul – ambos pontos críticos globais de biodiversidade que abrigam um alto número de espécies ameaçadas e endêmicas.
África e Ásia: Ninguém Escapa
Na África, uma alta proporção de locais florestais não perturbados (56%) passou para novos regimes de temperatura média anual. Esses locais estavam principalmente concentrados na Bacia do Congo, que também experimentou fortes mudanças para novas faixas médias diurnas de temperatura e sazonalidade de temperatura.
No Sudeste Asiático e na Austrália, embora a novidade cumulativa da temperatura tenha sido notavelmente menor do que no resto dos trópicos globais, a alta novidade na temperatura média anual foi generalizada, ocorrendo em 24% dos locais florestais, predominantemente nos pontos críticos de biodiversidade da Nova Guiné, Sundaland e Wallacea.
Áreas Intactas: Uma Falsa Sensação de Segurança?
Um dos achados mais surpreendentes do estudo é que as áreas de floresta mais intactas e menos fragmentadas não estão necessariamente mais protegidas dessas mudanças de temperatura. Na verdade, em muitos casos, essas áreas prístinas estão experimentando novidades de temperatura ainda maiores do que as florestas mais perturbadas.
Isso acontece porque essas florestas intactas tendem a ter uma variabilidade interanual mais baixa em suas condições térmicas. Assim, mesmo pequenas mudanças incrementais nas temperaturas podem resultar em regimes de temperatura completamente novos.
Refúgios Climáticos: Os Últimos Bastiões
Nem tudo são más notícias, no entanto. Os pesquisadores também identificaram áreas onde a novidade de temperatura tem sido baixa, apesar das mudanças climáticas em curso. Essas “ilhas de estabilidade” estão espalhadas pelos continentes e são os melhores candidatos para atuar como refúgios climáticos.
Muitas dessas áreas estão localizadas ao longo de costas, onde a mudança geral de temperatura ao longo do período de 30 anos foi menos severa do que no interior continental. Por exemplo, partes do Escudo das Guianas e grande parte do sudoeste da Amazônia no Brasil e no Peru experimentaram recentemente climas anuais semelhantes à linha de base histórica.
Na África, partes da Bacia Ocidental do Congo, sudoeste de Camarões e a costa ocidental do Golfo da Guiné têm regimes climáticos relativamente estáveis em várias variáveis bioclimáticas. O Sudeste Asiático continental e a Austrália têm uma proporção alta (75%) de locais de floresta tropical que não passaram recentemente para regimes de temperatura altamente novos.
Um Chamado à Ação
Este estudo é um alerta vermelho para conservacionistas, políticos e para todos nós. Ele desafia a noção prevalecente de que os dosséis das florestas tropicais reduzem a gravidade dos impactos das mudanças climáticas. Na verdade, o oposto pode ser verdadeiro.
As florestas tropicais são os ecossistemas terrestres mais diversos do mundo, abrigando mais de 62% das espécies de vertebrados e mais de 75% das espécies de plantas com flores. Se não agirmos rapidamente para proteger essas áreas, especialmente os refúgios climáticos identificados, podemos estar condenando incontáveis espécies à extinção.
A proteção dessas áreas não é apenas uma questão de preservação da biodiversidade. É também uma questão de justiça social e direitos humanos. Muitas dessas florestas fazem parte das terras de povos indígenas, que dependem delas para sua subsistência e identidade cultural.
Conclusão: O Futuro em Nossas Mãos
As florestas tropicais do mundo estão em um ponto de inflexão. As mudanças de temperatura que estamos vendo agora, mesmo que pareçam pequenas, são como a ponta de um iceberg. Se não revertermos a tendência atual, podemos esperar impactos ainda mais dramáticos no futuro próximo.
Este estudo nos lembra que não podemos mais ver as florestas tropicais como invulneráveis às mudanças climáticas. Elas são, na verdade, incrivelmente sensíveis. Cada fração de grau conta.
A boa notícia é que ainda temos tempo para agir. A identificação de refúgios climáticos nos dá alvos claros para esforços de conservação. Precisamos proteger vigorosamente essas áreas, seja por meio de proteção legal, pagamentos de carbono ou empoderando as comunidades indígenas.
Ao mesmo tempo, não podemos esquecer a causa raiz do problema: as emissões de gases de efeito estufa. Reduzir drasticamente nossas emissões é a única maneira de garantir um futuro para nossas florestas tropicais e para nós mesmos.
O relógio está correndo, mas a batalha ainda não está perdida. Com ação imediata e decisiva, ainda podemos escrever um final feliz para esta história. O futuro de nossas florestas tropicais – e do planeta – está literalmente em nossas mãos. Vamos fazer a coisa certa.